Realidade e Realismo

Existe uma mentalidade muito comum que descreve qualquer alteração a uma fotografia como “batota”. Temos tantas maneiras de alterar as nossas imagens de forma tão dramática e drástica que podemos perder de vista o sujeito inicial. Começamos a distorcer o que existia na fotografia inicialmente e começamos a transformá-la noutra coisa completamente distinta.

Estas críticas são válidas. Destruir ou distorcer para lá de qualquer possibilidade de reconhecimento o nosso sujeito inicial não é, na minha opinião, correcto. Começamos por tirar uma estria a uma modelo, a “emagrecê-la” e a alisar a sua pele até o seu corpo atingir um qualquer padrão de beleza inalcançável e que perpetua estereótipos pouco saudáveis. É justo criticar a foto-manipulação por isso. Justíssimo, até.

Pessoalmente, não gosto de editar as minhas imagens até à exaustão. Não gosto de fazer o que descrevi em cima. Prefiro procurar uma maneira de representar fotograficamente uma pessoa da forma que lhe seja o mais cómoda possível, sem distorcer e alterar a sua essência.

Quando fotografei esta pessoa, o que eu vi estava a preto e branco?

Isto não significa que não altere e manipule as minhas imagens. Acho a busca pelo “real” completamente descabida e impossível. O meio que escolhemos para nos expressarmos- a fotografia, claro- engana muito. Apontamos a câmara a algo, premimos o botão e parece-nos que naquele momento toda a essência e “realidade” dessa coisa fica ali registada de forma perfeita e objectiva. Mas isso é uma mentira. Nenhuma câmara fotográfica capta o real, porque o real é impossível. Tentarei explicar de outra forma.

Nós lemos o mundo com os nossos órgãos sensoriais. O principal na fotografia é, claro, a visão. Temos um determinado ângulo de visão, bastante amplo, no qual grande porção ao centro é onde vemos com nitidez, o resto é a nossa visão periférica onde vemos tudo algo desfocado, mas conseguimos ver movimento, discernir formas. Porquê falar disto? Porque a maior parte das câmaras e objectivas fotográficas não funcionam da mesma forma. A não ser que estejamos a falar de objectivas-brinquedo, a maioria retém algum nível de detalhe na periferia da imagem, bastante superior ao nosso. O ângulo de visão do ser humano tem sido descrito de imensas formas, havendo quem o descreva como apenas o ângulo onde temos visão detalhada, ao centro, ao passo que outros o descrevem como os quase 180º de visão que efectivamente possuímos. Mas as objectivas com esses ângulos de visão distorcem imenso na periferia da imagem, enquanto que os nossos olhos não o fazem. Vejo em três dimensões; a fotografia é bidimensional.

Este arrasto de movimento é “real”?

Isto tudo para dizer que não há um análogo do fotográfico para a nossa biologia, pelos menos não um perfeito. E, mesmo que houvesse, a nossa percepção é apenas a nossa. Eu vejo a cor de forma diferente da de uma pessoa daltónica. Temos todos uma percepção nossa, única e pessoal. Definir o real torna-se impossível em termos práticos mas também filosóficos. Quem diz que o meu real é inferior ao real da outra pessoa?

Considero esta uma questão desnecessária e redutora. A não ser que sejamos jornalistas, com o dever de não enganar o público, a manipulação e alteração das nossas fotografias é perfeitamente aceitável, e em alguns casos necessário. Poder alterar uma imagem de forma a melhor servir a nossa visão não invalida em nada a imagem que capturámos. Por vezes é impossível remover uma distracção da nossa fotografia, como um elemento a que não podemos aceder e colocar de fora do enquadramento. É diferente a remoção de um elemento que distrai, da recriação ou alteração por completo de elementos presentes numa imagem.

Recordo a polémica envolvendo o grande fotógrafo Steve McCurry, que retirou pessoas de algumas das suas imagens, e que colocou pessoas noutras. Não desejando opinar sobre se o que fez foi correcto ou incorrecto, sei que o seu trabalho apesar de (aparentemente) ter sido manipulado, continua a mover-me emocionalmente.

A maioria de nós não trabalha nem com jornais nem com revistas cientificas- pelo menos nem sempre- e regemo-nos por outras regras. O nosso contexto é artístico. Se retirar um microfone num canto da minha imagem é a melhor forma de retirar distracções, irei fazê-lo. Não o faço com muita regularidade, e tendencialmente evito, mas se é a única maneira, faço-o. As ferramentas ao nosso dispor devem ser usadas ao serviço da nossa visão. E é nosso dever ético não deturpar a essência do que fotografámos, em certos contextos, mas não temos obrigatoriamente as mãos atadas. Experimentar com a cor, com o contraste, com o equilíbrio de brancos, retirar uma distracção ou outra das nossas imagens não é um pecado mortal nem temos obrigação nenhum para com a “realidade”. Tenho fotografias feitas à noite com exposições longas. Têm nelas mais luz do que eu conseguia ver com os meus olhos. Isso é importante?

Seria saudável abandonar esta noção de que a câmara não mente. Acreditamos que este meio tem uma integridade intrínseca por causa da sua natureza. “É tudo tão real!”

Seria saudável para o nosso meio e para a discussão artística o abandono desta noção que infantiliza a nossa forma artística e lhe retira toda a capacidade para expressão abstracta. Não devemos fotografar nem editar as nossas fotografias de acordo com as expectativas de ninguém a não ser de nós próprios. Acredito que se deixássemos para trás estas discussões arbitrárias poderíamos avançar para discussões mais importantes, relacionadas com a nossa visão e com as histórias que contamos através do nosso meio artístico de eleição.

Se aceitamos que o cinema não tem de se preocupar com o real; se aceitamos que uma pintura não consegue ser ou representar a realidade de forma objectiva; se aceitamos que a escultura pode ser abstracta e não “é” a realidade; se aceitamos a literatura- literalmente palavras escritas em papel- como forma artística, se aceitamos que os actores no teatro são isso mesmo: actores; se aceitamos que a arquitectura não tem de se preocupar com “realismos”; se aceitamos que a música pode ser de mil géneros e não se preocupar com a “realidade”, porque não aceitamos que esta busca pelo realismo nos cega a toda uma discussão muito mais interessante e edificante sobre aquilo que sentimos e sobre a nossa linguagem e sobre a forma como vemos o mundo?

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