A busca pela perfeição

Creio que sofro de um problema que me caracteriza desde sempre. Sou capaz de escrever ou de fotografar qualquer coisa e no fim descartar completamente o que fiz. No caso da escrita costumo apagar, mas na fotografia costumo deixar um monte de zeros e uns a apodrecer no meu disco rígido. Não volto a tocar-lhes e encaro-as como rascunhos de uma ideia que falhou. Sei, com a parte do meu cérebro que usa a lógica, que lá estão esquecidas certamente muitas fotografias boas e com sentido artístico. Mas na altura não achei boas, não as achei perfeitas, e por isso descartei-as.

Vejo muita vez a demanda pela perfeição caracterizada e descrita como uma loucura. Algo inalcançável por definição. Um pouco como no mito de Sísifo, acredito que passamos uma vida inteira a procurar a perfeição no que fazemos e fotografamos porque queremos exprimir a nossa identidade através deste meio que escolhemos, mas as nossas ferramentas técnicas estão sempre uns quantos passos atrás da nossa voz. Quando chegamos ao nosso destino, descobrimos que já não nos satisfazemos com isso, que a nossa atitude e ideário mudou e precisamos de nos readaptar. Empurramos a pedra até ao cimo do monte e quando achamos que o nosso trabalho está feito, ela rola monte abaixo, para nosso desespero.

Ou encaramos isto com naturalidade, ou a nossa criatividade sofre. Estamos em 2019. Creio que é seguro dizer que tudo o que pudermos imaginar, é realizável fotograficamente, quer através da melhor tecnologia fotográfica- as melhores câmaras e objectivas- como através de suites de software que nos permitem colmatar quaisquer limitações tecnológicas, ou até de encenação, localização, iluminação, etc. Os nossos problemas com a nossa arte, acredito eu, advêm de nós mesmos, e não do nosso material.

A busca constante pela perfeição pode paralizar-nos. Pode impedir-nos de realizar o nosso potencial no momento em que estamos. Pode impedir-nos de exprimir ideias que apesar de imperfeitas, eram únicas e nossas. Tento encarar de outra forma. Não encaro esta busca pela perfeição absoluta como um defeito, mas como uma característica como qualquer outra. E tentei aprender a usá-la a meu favor, nas suas partes boas, e a mitigar as suas partes más, com esforço.

Se, como eu, se deixou arquivos de fotografias abandonados algures por explorar sem lhes dar uma oportunidade de arejar, uma coisa acertada de se fazer é voltar a esse material deixando passar algum tempo desde a sua criação. O tempo cria algum distanciamento emocional, e essa distância é importante porque no momento em que decidimos não avançar com essas fotografias, caracterizámo-las para nós próprios como falhanços, e é vital estarmos longe desse sentimento. Isto requer algum esforço. Enfrentar o que é para nós um falhanço é difícil, é doloroso, é uma recordação de que nos propusemos a algo e não o alcançámos.

Mas é por isso que é importante tentar de novo. Se não conseguirmos realmente aproveitar nada do que fizemos, podemos tentar de novo. Ou se achamos que a ideia não tem pernas para andar, podemos simplesmente aprender quaisquer que sejam as lições que temos a retirar disso e seguir em frente. A nossa voz, a nossa identidade, está em constante mutação, porque nós estamos também em mudança constante.

Esse é o grande segredo de ser um criativo. A criatividade não vem com um manual de leis e instruções. Ela é o que fazemos dela. Ser verdadeiramente criativo significa que falharemos imensas vezes. Que vai doer quando falhamos. Que vai ser doloroso enfrentar o falhanço, pelo que convém que saibamos lidar com ele o melhor possível. E que, dia após dia, continuamos a trabalhar e moldar essa visão.

Tenho aliás duas definições para perfeito. Uma delas é o perfeito para outra pessoa. Encontramos muitas pessoas assim. Para elas está tudo perfeito, incrível, sem mácula. Outras criticam o que querem, definem as falhas a que nós nem ligámos nem vimos nem considerámos. Lembro-me de uma vez ter feito uma fotografia como de homenagem a um guitarrista de Blues com um amigo, e de a ter mostrado à dona de um bar onde essa fotografia original está numa parede. Desfez a minha versão. Encontrou as falhas que ela quis achar. Leu o que eu fiz como uma tentativa de cópia. O guitarrista em questão era BB King. O meu amigo é um tipo louro, branco e de olhos azuis. Esta pessoa não fez nada de errado, apenas criou e aplicou o seu critério de perfeição como ela achou que devia. No momento ri-me com isso, achei graça, mas estava ali uma grande lição. Há mais do que uma definição de perfeição.

E a outra definição é a de que perfeito- que prefiro- é o que defino para mim próprio como tal. Está perfeito porque eu assim o defino. Isto é incrivelmente libertador. Coloca o controlo do meu processo artístico nas minhas próprias mãos. Permite-me estar em controlo da minha linguagem visual. Isto não pode servir de desculpa para uma fraca execução técnica, nem para criar e distribuir trabalho preguiçoso e desleixado. A excelência e o empenho no que fazemos não podem nunca ser deixados de lado.

E posso dizer que, regra geral, esta preocupação com a perfeição, com o ter de ficar tudo no seu máximo expoente- signifique isso o que significar- advém de apenas um só factor: nós mesmos. Nós mesmos e a preguiça. Preguiça é uma palavra suja, mas é um descritor perfeito. Preguiça de pegar numa ideia e lutar por ela, de a desenvolver, de ver as suas limitações e as minhas limitações enquanto artista, a preguiça de passar pela dúvida, pela incerteza, pelo medo de falhar. É ao bater-nos contra estas noções e limitações nossas que crescemos enquanto artistas, e o crescimento é doloroso. Lutamos, de certa forma, contra nós próprios. Se não consigo fazer exactamente como quero, nem sequer tento. É uma resposta preguiçosa a uma questão tão velha quanto a arte em si. E se me deixo ficar, sem lutar para concretizar a minha inspiração em algo palpável e real, descarto ideias e emoções reais que podem e devem ser expressas. Descarto a minha voz e a minha linguagem, em favor de nada.

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