Paixão
Há um sentimento que me toma de assalto pelo menos uma vez por semana. Às vezes mais. Que me aflige, de certa forma. Que me atormenta e perturba um pouco, enchendo de dúvida e apatia. Sempre a dúvida do “para quê”. Para que é que faço isto.
Por vezes, nestas noites em que saio para fotografar um concerto ou evento, penso nas horas de autocarro para lá e para cá. De Caldas da Rainha para Lisboa e depois de Lisboa para Caldas da Rainha. Chegar a casa pelas 2h da madrugada, editar as imagens com imenso cuidado. Não costumo falar muito do processo que é uma reportagem, quer de concerto quer de outra coisa qualquer. Não faz parte do discurso habitual de um fotógrafo, falar de como nos preparamos, como fazemos as coisas num sentido mais abstracto.
São horas de viagem, horas de trabalho no computador a preparar as imagens para lançar, com todo o respeito pelas bandas e artistas envolvidos, tentando sempre que saiam bem representados e dignificados, para que se possam rever nas suas fotografias e sentir algum orgulho. Se não gostasse do que faço, certamente fazer três horas de viagem num dia para fotografar durante quinze minutos seria inaceitável.
Normalmente ao entrar num concerto temos entre dez a quinze minutos para que o artista toque as três primeiras músicas e depois temos de sair. O tempo é altamente crítico e cada segundo conta. Se se falhar, não podemos pedir para voltar a entrar e repetir. Uma oportunidade, um disparo perdidos não se podem recuperar. É a natureza deste trabalho. Para quem vê de fora parece um ambiente de alta pressão, e intimida. Eu mesmo o senti. Antes de fazer o meu primeiro concerto achava-o um trabalho impossível. Quando um amigo me pediu para fotografar o primeiro espectáculo da sua banda achei que iria falhar redondamente. Não aconteceu. Mas não deixa de ser um trabalho difícil, que coloca toda a nossa capacidade artística e técnica à prova.
E é disto que quero falar aqui. Da paixão, da exigência, do desejo de evoluir e melhorar constantemente. Um concerto é um caso de excepção na sua qualidade “explosiva”. É um ambiente onde nos adaptamos e vingamos ou falhamos. Não há segundas oportunidades, e ou nadamos ou nos afundamos. A nossa sobrevivência neste meio depende de um intervalo curto de tempo em que o artista nos deixa fotografar. E temos esse curtíssimo espaço de tempo para fazer o melhor trabalho possível.
Porque falo disto? Porque para mim fotografar músicos despertou um gosto pela adrenalina que eu pensava não ter. A pressão colocada em cima de nós é grande. O espaço de tempo que temos para produzir fotografia é curtíssimo e passa num ápice. E depois, em alguns casos, milhares de pessoas vão ver o que fizemos e julgar essas fotografias. Podia ser um terror. No meu caso ganhei tamanha paixão por isto que hoje preciso de voltar com regularidade. Faz-me falta. Encontrei prazer em trabalhar neste ambiente.
Mas é claro que nem tudo são concertos e não se sentirá esta pressão em todos os trabalhos. A maioria dos trabalhos tende a ser mais relaxado. Não iremos encontrar esta adrenalina num trabalho em que fotografamos paisagens, por exemplo. Mas se é isso que nos apaixona, encontrarmos razões para amarmos esse trabalho é da mais vital importância para nós. O truque é colocarmos esta paixão nesses outros trabalhos. Descobrimos assim que nos apaixona tanto fazer um retrato como ir ao concerto de um grande artista e fotografá-lo.
Desta forma eu descobri que andar na música foi um catalisador para desbloquear essa paixão. Desbloqueou desejos, quebrou amarras, libertou a minha criatividade. Mas essa paixão que já lá estava presente não sobrevive nem se limita à música. Precisei de encontrar um caminho, uma direcção para onde enviar essa energia e empenho. Comecei o projecto Caras da Minha Terra. Experimentei técnicas novas de edição. Fotografei em sítios novos. Fui conhecer pessoas interessantes. Procurei novas influências. Estudei. Fiz e faço fotografia como não fazia até aí. Redireccionei toda este novo ímpeto criativo para novas direcções e descobri que me apaixonavam tanto como a música.
Mas, para quê esta lengalenga toda? Acredito firmemente que quem vê fotografias tem a capacidade de as ler de uma forma que vai além da superfície. É instintivo. E que sabemos distinguir a fotografia feita com paixão e amor pelo que se está a fazer daquela que foi feita só porque sim, ou para explorar o gadget mais recente. O que eleva a qualidade do nosso trabalho não é a objectiva mais recente, ou a câmara mais incrível do mercado, mas sim a nossa relação com o sujeito. Fotografar músicos ajudou-me a entender que quando o vínculo presente entre nós e o que fotografamos é forte, o nosso trabalho sai a ganhar, e que esse vínculo pode criar-se no momento, com uma conversa, pode criar-se sentindo e aprofundando a nossa ligação de pertença à Natureza, pode vir da admiração intensa pelo trabalho de outro artista…
Há mil formas de transferir energia e paixão para o nosso trabalho. O nosso dever é descobri-las. Numa altura em que estudamos a melhor hora para colocar um post no Instagram, para ele receber o máximo de visualizações e ser rapidamente atirado para o fundo das timelines, para que novos posts lhe tomem o lugar, pode ser difícil entender isto. Uma fotografia pode parecer quase descartável e isso pode ser altamente desmoralizante. Mas o nosso dever é sempre, sempre este. Encontrar o ponto de vista mais apaixonante, mais cativante possível, sobre aquilo que fotografamos. Colocar tudo de nós no que fazemos. E descobrindo esse amor mais forte pelo que fazemos, descobriremos outra forma de olhar e de ver as coisas na nossa vida.
Há já alguns anos que desejo começar a escrever mais sobre o processo artístico e sobre a forma como vemos e fotografamos, e o que nos move, e até a comunidade fotográfica. Espero que com este post possa dar os primeiros passos nesta direcção.