Somos Nós: Nuno Conceição
Há mais ou menos dois meses quando comecei este projecto tinha-me convencido completamente de que procurar as pessoas para as fotografar era desnecessário. Uma pessoa, depois outra e depois uma outra tentaram convencer-me a fazê-lo mas eu não me deixei levar. Afinal de contas, isto não iria demorar “nada”.
Não me lembro o que me fez dar o clique e aceitar. Talvez a insistência. Sei que o fiz, e que comecei, à minha maneira a fotografar alguns amigos aqui e ali nas suas casas. Só. Um dia uma outra amiga, perguntou-me por que não dizia às pessoas para escreverem um texto que acompanhasse as fotografias. E aí, a partir desse momento, o que tinha começado como um pretexto para andar um pouco, ver amigos de forma segura e não perder a prática a fotografar, transformou-se em algo completamente diferente.
No primeiro dia que saí para fotografar, encontrei alguns bons amigos, gente que me é próxima e em quem confio imenso e de quem sinto imensa falta. Vi-te lá ao longe a dizer adeus, remoí a dor de não te poder abraçar, fiz conversa de circunstância. Engoli em seco. Segui caminho.
Subi as escadas do teu local de trabalho para te fotografar, vi-te tão preocupada comigo... Sabes que tenho asma, e também tens que proteger os teus. O desinfectante saía a cada toque acidental num qualquer objecto teu. A máscara tapava-nos a cara mas não tapava o que te vi sentir, nem, presumo eu, conseguia ocultar o que me atormentava os pensamentos. Quis muito desanuviar a tensão que se sentia. Mas não me saiu nada. Engoli em seco. Segui caminho.
Conversei contigo à janela, estavas preocupado com os grupos de pessoas que vês juntar-se, sem máscaras nem cuidados, ao pé da tua casa. Quis pôr uma mão no teu ombro, dizer-te que seguramente não terias de te preocupar por muito tempo. Mas não te consegui mentir.
Engoli em seco. Segui caminho. Para casa.
Não muito longe de casa, suponho que por um acumular insuportável de dor e raiva, tive de lutar para conter as lágrimas. Acelerei o passo, tentei conter até chegar a casa. Abri o portão, entrei na garagem, sentei-me nos degraus das escadas, com as lágrimas já a correr-me pela cara e preparei-me para não conter mais o esforço. O choro começava já, descontrolado, a correr pela minha cara, quando me lembrei que precisava de desinfectar as mãos o melhor possível antes de poder limpar as lágrimas.
Esfreguei as mãos desenfreadamente, descontrolado, as lágrimas a tirarem-me a visão, toda ela agora um borrão indistinto, quase tirado de uma pintura em aguarela para em seguida voltar a sentar-me nas mesmas escadas. O choro dava lugar ao riso. O riso provocado pelo ridículo da situação. O riso que vem desse lugar que desperta no cérebro sempre que se é confrontado com uma situação inesperada e de difícil compreensão. Ter de parar de chorar para lavar as mãos por causa de uma coisa que nem se consegue ver a olho nu. Ri. Ri até me faltar a respiração.
E depois voltaram as lágrimas. Agora sim, descontroladas, sem barreiras. O soluçar que me deixou de peito dorido. A revolta de não saber quando nos podemos voltar a cumprimentar, a abraçar, a beijar, a tocar como demos por garantido durante todas as nossas vidas.
Podia aproveitar este espaço para falar de tudo o que senti, de tudo o que penso sobre este período e o que ele nos diz sobre o valor das nossas vidas nesta sociedade e neste sistema, mas prefiro não o fazer. Senão estávamos aqui até depois de o COVID-19 deixar de ser bicho papão. Mas posso falar de uma coisa que muito me tem dado que pensar e me tem tirado muita paz.
É esperado de nós o regresso ao trabalho. É esperado que, em condições nunca garantidamente seguras, voltemos aos nossos trabalhos. Nos transportes públicos, nos espaços em que trabalhamos com colegas, nos espectáculos, nos restaurantes… Como que para manter o sistema a funcionar fosse necessário arriscar as nossas vidas. Isso sim, tira-me paz, tira-me descanso. Foi um violento abrir de olhos, descobrir o valor real das nossas vidas.
Mas vou parar aqui. Aproveito este espaço para dizer: sinto a vossa falta. Sinto a falta não da “normalidade” (seja isso o que for) mas de vocês. Do riso solto, da conversa, da partilha em verdade. Se há coisa que me assustou, dos relatos que ouvi, foi como nos foi fácil virarmo-nos para dentro. Não olhar para o “outro”, não prestar atenção, não procurar saber das outras pessoas. O meu desejo maior é que pelo menos estas fotografias sirvam para lembrar que continuamos aqui, que temos histórias por contar e que todos vivemos e sentimos este momento de formas diferentes e que merecemos um espaço para o contar.
Mantenham-se seguros.